A História da Rainha Nzinga Mbandi
I.
Introdução: Apresentação da Rainha Nzinga Mbandi e a importância do seu papel
na história de Angola
A Rainha
Nzinga Mbandi é uma figura proeminente na história africana, notável
especialmente pelo seu papel na resistência contra a colonização portuguesa no
século XVII, no território que hoje corresponde a Angola. Ela desempenhou
papéis multifacetados como rainha guerreira, negociadora habilidosa e
estrategista militar de destaque. O seu legado perdura como um símbolo de
resistência e uma heroína nacional em Angola. A forma consistente como Nzinga é
retratada em diversas fontes como uma figura de forte oposição e de importância
nacional sugere uma narrativa profundamente enraizada na história angolana e na
memória coletiva. A repetição destes temas aponta para uma construção
deliberada da sua imagem histórica, provavelmente amplificada após a
independência para promover a unidade e a identidade nacional. Esta questão
será explorada mais aprofundadamente na secção dedicada ao seu legado. Além
disso, as várias grafias do seu nome (Njinga, Nzinga, Ginga, Zingha) indicam os
desafios da transliteração de nomes africanos através de línguas europeias e a
evolução da ortografia ao longo do tempo. Esta variação linguística é um
problema comum nos estudos históricos africanos e será reconhecida neste
relatório, possivelmente com uma nota sobre a grafia contemporânea preferida
(Njinga), conforme indicado em algumas fontes.
II. Origens
e Juventude: Detalhes sobre o seu nascimento, família real do Ndongo e a sua
educação
Njinga
Mbandi nasceu por volta de 1582 ou 1583. Era filha de Ngola Kiluanji , também
conhecido como Mbandi a Ngola Kiluanji ou Ngola Kilombo, o rei do reino do
Ndongo, localizado na atual Angola central. A sua mãe era Kengela ka Nkombe,
uma das esposas escravizadas do seu pai e a sua concubina favorita. Existe uma
lenda sobre o seu nascimento que envolve o cordão umbilical enrolado no seu
pescoço (kujinga significa torcer ou virar em quimbundo), o que se acreditava
significar um futuro poderoso. Desde tenra idade, recebeu treino militar e
político, demonstrando grande destreza física e aptidão para a guerra,
incluindo treino com o exército e habilidade com um machado de batalha.
Participou em deveres oficiais e de governação ao lado do seu pai, incluindo
conselhos legais e de guerra, e rituais importantes. Foi ensinada a ler e
escrever em português por missionários portugueses visitantes. Teve duas irmãs,
Kambu (Lady Barbara) e Funji (Lady Grace), e um irmão, Mbandi, que era o
herdeiro aparente. A ênfase no seu nascimento incomum e no seu treino precoce sugere
uma narrativa cultural que prenunciava o seu futuro papel como líder poderosa e
não convencional, especialmente num contexto onde as governantes femininas eram
menos comuns. Isto alinha-se com a ideia de que indivíduos excecionais são
frequentemente marcados desde o nascimento no folclore e nas narrativas
históricas para legitimar as suas conquistas posteriores. A sua literacia em
português foi uma vantagem significativa ao lidar com os portugueses,
permitindo-lhe compreender as suas comunicações e conduzir negociações de forma
eficaz. Esta habilidade proporcionou-lhe uma ferramenta crucial para a
diplomacia e a recolha de informações, distinguindo-a de muitos outros líderes
africanos da época.
III.
Ascensão ao Poder e Período de Reinado:
A. Primeira
Regência e Reinado no Ndongo (1624-1626):
O seu irmão,
Ngola Mbandi, tornou-se rei após a morte do pai em 1593. Era conhecido por ser
um rei cruel e matou o filho de Nzinga. Inicialmente, Nzinga fugiu para o Reino
de Matamba. Devido à pressão portuguesa, Mbandi enviou Nzinga como sua enviada
para negociar a paz com os portugueses em Luanda, em 1622. Durante as
negociações com o governador João Correia de Sousa, recusou-se notoriamente a
sentar-se no chão, afirmando a sua igualdade. Converteu-se ao cristianismo,
adotando o nome de Dona Anna de Sousa. Após o suicídio do seu irmão em 1624 (ou
morte) , Nzinga tornou-se a governante do Ndongo. O seu reinado no Ndongo
enfrentou a oposição dos portugueses, que apoiavam Hari a Kiluanje. Acabou por
ser deposta do Ndongo em 1626 e retirou-se.
B. Conquista
e Reinado em Matamba (1631-1663):
Retirou-se
para o interior e conquistou o reino independente de Matamba entre 1631 e 1635.
Depôs a rainha de Matamba, Mwongo Matamba. Estabeleceu uma nova capital em
Matamba. Governou Matamba até à sua morte em 1663.
C.
Restauração no Ndongo (1657-1663):
Após anos de
resistência, negociou um tratado de paz com os portugueses em 1656. Em 1657, os
portugueses reconheceram-na novamente como governante do Ndongo, além de
Matamba. Governou ambos os reinos até à sua morte, a 17 de dezembro de 1663. A
perspicácia política de Nzinga é evidente na sua capacidade de navegar por
dinâmicas de poder complexas, primeiro como enviada, depois como governante do
Ndongo, seguida pela conquista e governo de Matamba e, finalmente, alcançando o
reconhecimento sobre ambos os reinos. Isto demonstra uma visão estratégica de
longo prazo e adaptabilidade face às mudanças de circunstâncias e à pressão
portuguesa. A sua fuga inicial para Matamba não foi uma derrota, mas um
reposicionamento estratégico. O facto de os portugueses inicialmente se oporem
ao seu governo no Ndongo, mas posteriormente reconhecerem a sua autoridade ,
destaca a mudança do cenário político e a eficácia da sua resistência ao longo
do tempo. Isto sugere que os seus esforços persistentes e as suas alianças
estratégicas acabaram por forçar os portugueses a reconhecer o seu poder e
legitimidade.
IV. O
Contexto da Colonização Portuguesa:
O interesse
português no Reino do Ndongo remonta ao início do século XVI, inicialmente
focado no comércio e em rumores de batismo. Paulo Dias de Novais liderou o
início da conquista portuguesa de Angola em 1575. Os portugueses estabeleceram
um posto comercial em Luanda em 1575 com a ajuda do Reino do Congo, rivais do
Ndongo. A expansão portuguesa visava controlar o lucrativo comércio de escravos
e explorar potenciais recursos minerais. Construíram fortes como Cambambe
(1603) e Ambaca (1618) em território Ndongo. Os portugueses procuraram
estabelecer um monopólio sobre as fontes de escravos ao longo da costa da
África Ocidental. O estabelecimento precoce de Luanda e a construção de fortes
indicam uma estratégia de longo prazo e agressiva de invasão portuguesa no
território e na soberania do Ndongo, preparando o terreno para um conflito
sustentado. Isto não se tratava apenas de comércio; era um esforço deliberado
para estabelecer uma presença colonial e exercer controlo sobre os recursos e o
povo da região. O envolvimento do Reino do Congo como rival do Ndongo destaca a
complexa dinâmica política interafricana que os portugueses exploraram para
avançar as suas ambições coloniais. A resistência de Nzinga não visava apenas
os portugueses, mas também tinha de considerar as potenciais ameaças e alianças
dentro do contexto regional mais amplo.
V. O Papel
de Nzinga na Resistência:
Nzinga
desempenhou um papel crucial na resistência ao crescente comércio de escravos
português e à invasão colonial na África Central. Inicialmente, procurou
negociar a paz e limitar a influência portuguesa. Quando as negociações
falharam, tornou-se uma líder militar feroz, liderando uma guerra de trinta
anos contra os portugueses. Recusou-se a permitir que os portugueses
controlassem a sua nação. A sua resistência limitou a colónia portuguesa em
Luanda a poucos quilómetros quadrados durante algum tempo. Deu asilo a escravos
fugitivos de território controlado pelos portugueses, minando o seu comércio de
escravos. A sua inteligência, orgulho e perseverança forçaram os portugueses a
reconhecer finalmente os seus reinos. A mudança de Nzinga da diplomacia para a
resistência armada demonstra uma abordagem pragmática para proteger o seu povo
e a sua soberania. Quando uma estratégia falhou, ela prontamente adotou outra,
mostrando a sua adaptabilidade e determinação. Esta não foi uma abordagem
puramente reativa; foi uma escalada calculada com base na crescente ameaça
representada pelos portugueses. A sua política de conceder asilo a escravos
fugitivos não foi apenas um ato humanitário, mas também uma manobra estratégica
para enfraquecer a base económica e laboral portuguesa, ao mesmo tempo que
fortalecia o seu próprio apoio. Esta ação desafiou diretamente o cerne da
empresa colonial portuguesa em Angola, tornando-a uma adversária significativa.
VI. Estratégias
Políticas e Diplomáticas:
A.
Negociações com os Portugueses:
A sua missão
diplomática inicial em 1622 visava alcançar a paz e a retirada das forças
portuguesas. Ela negociou um tratado onde os portugueses concordaram em
retirar-se e ajudar o Ndongo contra mercenários. No entanto, esta paz foi de
curta duração. Mais tarde, após décadas de guerra, envolveu-se em longas
negociações que levaram a um tratado de paz em 1656, reconhecendo o seu governo
sobre Matamba e, subsequentemente, sobre o Ndongo.
B. Alianças
Estratégicas:
Formou
alianças com antigos estados africanos rivais para lutar contra os portugueses.
Forjou uma aliança estratégica com a Companhia Holandesa das Índias Ocidentais
após a sua ocupação de Luanda em 1641. Utilizou a aliança com os holandeses
para repelir ataques portugueses e até os derrotar em 1647. A aliança com os
holandeses enfraqueceu depois de estes terem sido derrotados pelos portugueses
em 1648 e se retirarem da África Central.
C. Conversão
ao Cristianismo e Implicações Políticas:
Converteu-se
ao cristianismo e adotou o nome de Dona Anna de Sousa em 1622, possivelmente
para obter o favor dos portugueses. Exortou o seu irmão a ordenar a conversão
do seu povo ao cristianismo. Mais tarde, em 1623, rompeu com o cristianismo e
aliou-se aos guerreiros Jaga (Imbangala). Recomprometeu-se com a Igreja
Católica no tratado de paz de 1656.
D. Outras
Manobras Políticas:
Explorou as
rivalidades europeias aliando-se aos holandeses contra os portugueses. Deu
asilo a soldados africanos (kimbares) treinados pelos portugueses,
prometendo-lhes terras e recompensas para se juntarem ao seu exército.
Infiltrou-se no exército português para incitar os soldados africanos a
desertarem. Usou estrategicamente alianças matrimoniais. A conversão de Nzinga
ao cristianismo foi claramente uma ferramenta política e não um ato puramente
religioso, usada para navegar nas relações com os portugueses e potencialmente
ganhar aliados. A sua posterior rutura com o cristianismo e o subsequente novo
compromisso apoiam ainda mais esta interpretação. Isto demonstra o seu
pragmatismo e a sua vontade de adaptar as suas estratégias com base nas
necessidades políticas do seu reino. A sua aliança com os holandeses destaca a
sua compreensão do cenário político europeu mais amplo e a sua vontade de
aproveitar esta dinâmica a seu favor na luta contra os portugueses. Isto
demonstra uma compreensão sofisticada das relações internacionais para uma
governante africana do século XVII.
VII.
Estratégias Militares e Táticas de Guerra:
Nzinga foi
uma rainha guerreira destemida que liderou pessoalmente as tropas em batalha,
mesmo na casa dos sessenta anos. Treinou o seu exército na arte da guerra de
guerrilha, realizando ataques rápidos e inesperados contra os assentamentos e
as linhas de abastecimento portugueses. Formou uma aliança militar com o senhor
da guerra Imbangala Kasanje para reconstruir as suas forças depois de ter sido
expulsa do Ndongo. Utilizou a superioridade militar do seu exército para
conquistar o Reino de Matamba. A sua liderança militar inspirou outros líderes
africanos a resistirem à colonização europeia. As suas forças fizeram centenas
de milhares de prisioneiros durante os conflitos, vendendo cerca de 200.000
escravos aos portugueses. O envolvimento pessoal de Nzinga em campanhas
militares foi crucial para inspirar as suas tropas e demonstrar o seu
compromisso com a resistência. Isto também desafiou os papéis de género
tradicionais na guerra. Esta liderança prática provavelmente fomentou a
lealdade e a determinação dentro do seu exército. A adoção de táticas de guerra
de guerrilha foi uma resposta estratégica ao poder de fogo superior do exército
português, permitindo que as suas forças hostilizassem e perturbassem o inimigo
de forma eficaz. Isto demonstra uma adaptação tática aos desafios específicos
de confrontar uma potência colonial europeia. O envolvimento de Nzinga no
comércio de escravos apresenta um aspeto complexo e controverso do seu reinado.
Embora resistisse à escravização do seu próprio povo pelos portugueses, também
participou no comércio, provavelmente para obter vantagens económicas e
políticas. Esta contradição merece uma discussão cuidadosa no relatório. Isto
realça as complexas realidades do poder e da sobrevivência no contexto do
comércio transatlântico de escravos, onde mesmo aqueles que resistiam à
colonização por vezes tinham de se envolver com os seus mecanismos.
VIII.
Personalidade e Aspetos Culturais:
A.
Personalidade:
Inteligente,
carismática e sagaz. Guerreira destemida. Negociadora e diplomata habilidosa.
General militar de destaque. Líder resiliente e assertiva que procurou a
igualdade. Pragmática e disposta a fazer concessões quando necessário.
Determinação inabalável e recusa em ser controlada. Conhecida pela sua
inteligência, sabedoria política e diplomática e bravura incomparável.
Recusou-se a aceitar uma posição subserviente. Demonstrou considerável aptidão
com um machado de batalha. A sua sexualidade escandalizou os portugueses;
manteve concubinos e concubinas, casou-se com vários maridos, vestiu-se como
homem e insistiu em ser chamada de rei.
B. Aspetos
Culturais Associados ao seu Reinado:
Tradições da
monarquia e liderança Mbundu. Importância da diplomacia na cultura Mbundu.
Forte cultura guerreira na sociedade Mbundu. Resistência ao colonialismo e ao
comércio de escravos como um aspeto cultural central. Adaptação estratégica e
interação entre as culturas Mbundu e europeia (por exemplo, conversão ao
cristianismo). O seu reinado tornou-se um símbolo de desafio e resiliência, inspirando
as gerações futuras. Recordada como a Mãe de Angola. Homenageada como uma
grande protetora do seu povo e uma lutadora de negociações. Reverenciada como
uma líder notável que simboliza a luta contra a opressão. A sua memória é
preservada nas tradições dos negros brasileiros e dos descendentes
afro-portugueses. Celebrada no Carnaval do Rio com a eleição de uma Rainha
Njinga. As descrições da personalidade de Nzinga retratam-na consistentemente
como uma líder forte, inteligente e assertiva que desafiou as expectativas e
enfrentou tanto as potências coloniais como as normas de género tradicionais.
Esta imagem poderosa contribuiu significativamente para o seu legado duradouro
como símbolo de resistência. Os aspetos culturais associados ao seu reinado revelam
uma sociedade com tradições de liderança estabelecidas, um valor pela
diplomacia e uma forte resistência à opressão. As ações de Nzinga estavam
profundamente enraizadas e refletiam esses valores culturais. A menção do seu
comportamento de inversão de género (vestir-se como homem, ser chamada de rei)
sugere uma estratégia deliberada para afirmar a autoridade numa sociedade
patriarcal e desafiar as perceções europeias sobre as governantes femininas.
Isto também destaca uma potencial área de conflito cultural com os portugueses.
Este comportamento não convencional provavelmente serviu para intimidar os seus
inimigos e reforçar a sua imagem como uma líder poderosa e única.
IX. Legado e
Importância Histórica para Angola:
A Rainha
Nzinga Mbandi é uma heroína nacional na Angola independente. A sua memória
pública foi transformada no século XX para representar a resistência
nacionalista ao colonialismo anterior. É recordada nas tradições populares dos
povos de ascendência africana nas Américas. A sua resistência inspirou a luta
armada do século XX, que acabou por ter sucesso e levou à independência de
Angola em 1975. É homenageada como um símbolo de desafio e resiliência. O seu
legado continua a inspirar aqueles que procuram justiça e igualdade. A sua vida
e as suas conquistas sublinham a rica história da resistência e da soberania
africana. Uma estátua de Njinga Mbandi ergue-se na praça de Kinaxixi, em
Luanda. A transformação da imagem de Nzinga num símbolo de resistência nacionalista
no século XX destaca a importância das figuras históricas na formação da
identidade nacional e na inspiração de movimentos de libertação. Isto demonstra
como as narrativas históricas são frequentemente reinterpretadas e
reaproveitadas para servir as necessidades dos movimentos políticos e sociais
contemporâneos. A contínua lembrança da Rainha Nzinga em Angola e entre as
comunidades da diáspora africana sublinha o impacto duradouro da sua
resistência e a sua importância como figura pan-africana. A sua história ressoa
para além das fronteiras de Angola, destacando a história partilhada de
resistência contra o colonialismo e a escravidão.
Em suma, a
vida da Rainha Nzinga Mbandi foi marcada pela sua ascensão ao poder nos reinos
do Ndongo e de Matamba e pela sua subsequente e prolongada resistência contra a
colonização portuguesa. Através de uma combinação de astutas estratégias
políticas e militares, ela defendeu os seus reinos e o seu povo contra a
crescente influência portuguesa durante várias décadas. O seu legado perdura
como um poderoso símbolo de resistência, soberania e orgulho nacional para
Angola, inspirando gerações futuras na luta pela liberdade e justiça. A sua
capacidade de combinar habilidades diplomáticas com liderança militar
destemida, juntamente com a sua personalidade resiliente e assertiva, fazem
dela uma das figuras mais significativas da história africana.
Tabela 1:
Cronologia da Vida e Reinado da Rainha Nzinga Mbandi
Data |
Evento |
c.
1582/1583 |
Nascimento
de Njinga Mbandi |
1593 |
Ngola
Mbandi, irmão de Njinga, torna-se rei do Ndongo |
1622 |
Primeira
missão diplomática de Njinga a Luanda |
1624 |
Njinga
torna-se Rainha do Ndongo |
1626 |
Njinga é
deposta do Ndongo |
1631-1635 |
Conquista
do Reino de Matamba por Njinga |
1641 |
Aliança de
Njinga com os Holandeses |
1656 |
Tratado de
paz entre Njinga e os Portugueses |
1657 |
Njinga é
novamente reconhecida como governante do Ndongo |
17 de Dez.
1663 |
Morte da
Rainha Nzinga Mbandi |